Auto: Paulo Pereira – Astrônomo do Planetário do Rio de Janeiro
No próximo dia 29 de julho, a comunidade muçulmana iniciará um novo ano, correspondente ao dia 1 de Muharam do ano de 1444 no calendário islâmico. Ao contrário do que ocorre nos países ocidentais, o ano novo islâmico não é um evento suntuoso, como a festividade Id Al-Fitr, que sucede o mês do Ramadã, esse sim o mês mais importante para os muçulmanos. Enquanto o nosso calendário é solar, o adotado em diversos países islâmicos é lunar, gerando situações curiosas, que poucas pessoas no ocidente se dão conta.
A edição de toda a revelação feita ao profeta Muhammad, compilada num único exemplar, ocorreu no ano 653, durante o governo do califa Uthman. Já o Hadíth, compilação dos ditos e ações do profeta, atingiu seu vigor no século 8. Juntas, a revelação e a tradição, moldaram não somente a sociedade, como a ciência islâmica. No caso da Astronomia, essa influência é acentuada. Com o calendário, não foi diferente.
O nosso calendário se baseia no movimento da Terra ao redor do Sol, e, portanto, acompanha o ciclo das estações. Um calendário lunar não tem esse compromisso pois, como o nome indica, ele se baseia apenas nas fases da Lua. Como consequência, as principais festividades religiosas caminham por entre as estações. Tome-se por exemplo, o mês mais importante do calendário islâmico ‒ o Ramadã, cuja origem remete à palavra de origem árabe “ramida”, que significa “ardente” (uma alusão ao jejum realizado na época mais quente do ano). Com a adoção do calendário lunar, este mês pode cair em qualquer estação do ano, inclusive no inverno.
Você deve estar se perguntando o porquê dos meses islâmicos caminharem pelas estações. O ano lunar tem cerca de 11 dias a menos que o ano solar. Assim, a cada ano no nosso calendário, o ano lunar começa 11 dias mais cedo. Para entendermos isso precisaremos falar sobre as fases da Lua.
A Lua não tem luz própria. Se assim fosse, ela seria sempre Cheia. Ela é o satélite natural da Terra, dando uma volta completa em 27 dias e 7 horas (27,32 dias), aproximadamente. Apesar disso, o ciclo lunar completo dura cerca de 29 dias e 12 horas (29,5 dias). Achou estranho? Lembre-se: a Terra não está parada, mas orbita o Sol. Na ilustração abaixo, na posição (a) temos a Lua Nova, quando o Sol, a Lua e a Terra estão aproximadamente alinhados, com a Lua entre os dois. Na posição (b), 27,32 dias depois, a Lua retorna à mesma posição que ela estava na posição (a). No entanto, como a Terra se moveu enquanto a Lua girava ao redor da Terra, a Lua Nova só ocorrerá cerca de dois dias depois.
O ano islâmico tem 12 meses lunares e, portanto, para obtermos a quantidade de dias no calendário lunar, basta multiplicarmos 12 por 29,5 que dá 354 dias. Assim, o calendário lunar tem certa de 11 dias a menos que o solar (que tem 365 dias). Como não é prático um mês de 29 dias e meio, cada mês do calendário lunar tem, de forma intercalada, 29 e 30 dias, o que na média dá os tais 29,5 dias.
“Perguntar-te-ão sobre os novilúnios. Dize-lhes: Servem para auxiliar o homem no cômputo do tempo e no conhecimento da época da peregrinação.” (Alcorão 2:189)
Curiosamente cada mês lunar se inicia com a primeira visão da Lua Crescente no horizonte oeste, logo após o pôr do sol, e cada dia começa ao pôr do sol (por aqui, a meia-noite marca o início de cada dia).
Costuma-se empregar no calendário islâmico um ciclo de 30 anos, sendo 11 deles bissextos (a saber, os anos 1, 5, 7, 10, 13, 16, 18, 21, 24, 26 e 29), quando se adiciona um dia ao décimo segundo mês, que passa a ter 30 dias.
Faltou esclarecer um dado importante, que é o marco inicial do calendário islâmico. Ele toma como referência a Hégira – migração do profeta Muhammad para a cidade de Medina, em 16 de julho de 622d.C.
Não é simples fazer a conversão do calendário islâmico para o gregoriano, uma vez que o calendário lunar é bem irregular. Além disso, em vários países islâmicos, as proclamações das autoridades religiosas quanto ao período de visibilidade da Lua Crescente costumam ter peso. Consequentemente, as datas fornecidas em diferentes localidades podem apresentar diferenças de um ou dois dias.
Existe uma maneira aproximada de fazer a conversão do ano gregoriano para o islâmico:
a) subtraímos 622 (ano da Hégira) do ano gregoriano;
b)multiplicamos o resultado por 1,031.
Por exemplo, o ano de 2022 corresponde a:
2022 – 622 = 1400 =>
1400 x 1,031 = 1443,4
Portanto o ano gregoriano de 2022 corresponde aos anos
1443 / 1444 islâmicos.
Aparentemente o calendário lunar foi adotado pelos muçulmanos porque era muito mais fácil de observar as fases da Lua do que se basear no movimento aparente do Sol. E não apenas. É mais fácil acompanhar o movimento da Lua por entre as constelações (o Sol, como sabemos, impede a visão das constelações durante o dia). O ciclo das fases lunares tornou-se uma “paixão” dos muçulmanos e “a Lua crescente” tornou-se o símbolo do Islã.
Ressalte-se que o calendário islâmico é direcionado para as práticas religiosas. No nível governamental, normalmente se utiliza o calendário civil, até porque vários países árabes têm uma parcela considerável de não muçulmanos.
Como a primeira visibilidade da Lua Crescente depende de fatores locais, em alguns lugares do planeta o ano novo islâmico ocorrerá no dia 30 de julho.
Uma última curiosidade: como o ano islâmico é sempre mais curto que o ano gregoriano, uma data no calendário islâmico pode ocorrer mais do que uma vez no decurso do nosso ano solar. Por exemplo, o Ano Novo Islâmico ocorreu duas vezes em 1943: uma em 8 de janeiro e outra em 28 de dezembro. A próxima vez que isso acontecerá será no ano 2041 (1463H).
Feliz 1444!
Nota de Agradecimento: A Fundação Planetário agradece a valiosa consultoria, na elaboração do texto, de Jamil Ibrahim Iskandar, professor de Filosofia Medieval Árabe na Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), Campus Guarulhos.
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