Uma das mais antigas rotas internacionais de comércio foi a chamada Rota da Seda, que perdurou do século 7 ao 13. Foi uma complexa rede de rotas de comércio que se estendeu por mais de 7.000km, da China ao Mediterrâneo, e incluía travessia marítima. O produto transportado mais valioso e, portanto crucial para a manutenção da rota, era a seda, uma dádiva da China, extremamente cobiçada pelos ocidentais. Você já deve estar se perguntando o que isso tem a ver com a Astronomia. Mas tem. Outro produto, extremamente valioso, circulava pela rota: o conhecimento dos astros.
De duas das mais importantes paradas da rota (Bagdá – então capital do império islâmico, e Xi´an – então capital da China), partiam numerosas caravanas, que cruzavam imensos desertos áridos e montanhas geladas. Além da seda, camelos carregavam diversos produtos: papel (criação chinesa), chá e cerâmicas, que iam para o oeste, enquanto o vidro, diversas especiarias, produtos metalúrgicos e ervas, eram enviados para o oriente.
A Rota da Seda foi fundamental para o crescimento econômico de diversas cidades no seu entorno. No entanto, tão ou mais importante quanto os produtos transportados, foram as “especiarias” intangíveis que circularam pela via: ideias, relatos de descobertas tecnológicas, cultura, e as ciências em geral, sendo a Astronomia uma das mais valiosas.
Convém lembrar que em meados do século 8, parte considerável da Rota da Seda estava em território muçulmano, sendo Bagdá um estratégico ponto de saída e chegada deste vigoroso fluxo. Não por acaso, nesta mesma época, a economia e o comércio de Bagdá floresciam, e com eles, as artes, a literatura, e as ciências. A Astronomia, em particular, era considerada a mais nobre entre as ciências naturais na sociedade muçulmana. À primeira vista esse dado pode parecer surpreendente ao olhar ocidental. No entanto, a Astronomia tinha muita utilidade para as demandas do exercício da fé, particularmente a determinação dos cinco momentos diários de oração, e a determinação da direção segundo a qual todos os fiéis deveriam voltar-se por ocasião da oração: a cidade sagrada de Meca. Por conta dessas necessidades espirituais, os muçulmanos iniciaram um detalhado e bem organizado programa de observação do céu antes do advento do telescópio.
De uma maneira geral, a atividade do astrônomo gozava de boa reputação e relativa liberdade de ação na sociedade muçulmana, que frequentemente o financiava. Tanto é que os astrônomos não tiveram grandes problemas para desenvolver pesquisas também em áreas não demandadas pela fé, tais como o estudo dos movimentos dos planetas. Já aqueles que “abusavam” dessa liberdade e estendiam sua área de pesquisa à astrologia, não costumavam ter a mesma boa vontade por parte da sociedade. É um processo tão interessante, que merece uma discussão aprofundada em outro momento. O que nos interessa aqui, é que a riqueza proporcionada pela Rota da Seda viabilizou pela primeira vez na história da humanidade, o investimento e o financiamento de atividades de pesquisa em Astronomia e demais ciências. Algo muito parecido com o que vários países fazem atualmente, inclusive o Brasil (embora uns mais e outros bem menos).
Os governos muçulmanos fomentaram a construção de vários observatórios em cidades que floresceram no entorno da rota. Contendo instrumentos extremamente precisos para a observação do céu, alguns observatórios, como os localizados em Maraga (atual Irã), Samarcanda (atual Uzbequistão) e em Istambul (Turquia), lembravam em vários aspectos os centros de pesquisas modernos.
O observatório de Maraga tem um lugar de destaque na história da Astronomia muçulmana medieval. Reflexo de um novo impulso nas atividades científicas no século 13, teve papel chave no desenvolvimento de sofisticados modelos pré-copernicanos para explicar o movimento dos planetas. Apesar destes modelos serem ainda geocêntricos (o heliocentrismo seria proposto no século 16, por Nicolau Copérnico), tiveram forte impacto dentro e além das fronteiras dos territórios islâmicos, e certamente influenciaram a revolução astronômica que ocorreria na Europa séculos depois. O observatório serviu de modelo para vários outros que seriam construídos na Pérsia, Transoxiana e Ásia Menor até o século 17.
O observatório de Samarcanda possuía cientistas de diversas etnias e religiões estudando os astros. Construído em 1420 com financiamento do astrônomo e governante de Transoxiana, Ulugh Begh, gerou uma enorme quantidade de dados astronômicos, que seriam traduzidos e utilizados na Europa até o século 17.
Já o surgimento do observatório de Istambul se deu quando a fase de esplendor de Bagdá era passado, e o centro político do mundo muçulmano havia sido transferido para Istambul. Sua construção foi financiada pelo sultão do Império Otomano, Murad III, com conclusão em 1577, quase na mesma época do observatório de Tycho Brahe em Uraniborg. O objetivo do sultão era deixar um legado que rivaliza-se com o observatório de Samarcanda.
À semelhança das instituições modernas, estes observatórios tinham ainda bibliotecas e dormitórios para os astrônomos e demais membros da equipe. Assim como as universidades de maior prestígio do mundo, estes observatórios atraíram cientistas e professores famosos, que acabaram por atrair outros sábios e estudantes de todas as regiões muçulmanas e de fora dela.
Muito antes da internet e do surgimento da aviação, a Rota da Seda trouxe globalização ao mundo medieval. No decorrer da assimilação e troca de ideias, culturas eventualmente se transformaram. Essa complexa “rede de dados” possibilitou que vários povos (gregos, índios, persas, árabes e chineses) tivessem pela primeira vez contato com civilizações distantes. As trocas se deram de várias formas, desde a disseminação de religiões, manifestações artísticas e culinária, até o conhecimento científico, como a Astronomia. Este intenso movimento de ideias e produtos estabeleceu os fundamentos do mundo moderno, com suas virtudes e defeitos.