TRÊS VISÕES VERNIANAS
(Hoje, reenviamos um artigo de fevereiro de 2019, tornado inacessível devido à migração do site para um novo servidor.)
A coluna hoje vem com uma micro-entrevista com autores de Ficção-Científica da atualidade que escreveram histórias onde Júlio Verne é um personagem: Octavio Aragão, “A Mão Que Pune – 1890” (2018), João Barreiros, “A Verdadeira Invasão dos Marcianos” (2004); David Brin, associado com Gregory Benford “Paris Conquers All!” (1996). Da dupla, coube a Brin representá-la na entrevista. Os dois primeiros títulos são livros, o terceiro é um conto. Segue uma rápida apresentação antes da entrevista em si, junto com links dos autores:
João Barreiros nasceu em Lisboa, Portugal. Filósofo formado, atuou como escritor de Ficção-Científica e antologista, havendo ainda ajudado a organizar o fandom português.
Octávio Aragão é carioca, Designer Gráfico por formação e Professor-Doutor na pós-graduação da Escola de Comunicação da UFRJ, onde também organiza o Prêmio LeBlanc de Ficção Científica e a Semana Internacional de Quadrinhos.
David Brin é americano, nascido na Califórnia. É Astrofísico, sendo consultor da NASA, Google entre outras corporações. Escreve ficção-científica: o filme O Carteiro (1997), com Kevin Costner, é adaptado de sua obra, mas em literatura é mais conhecido pelo universo do Universo Uplift (em Portugal foi publicado a trilogia de Uplift, sob o nome de “A Guerra da Elevação”).
Em poucas linhas, sobre o que é o seu livro?
JB: O meu livro trata o tema da vingança. Num universo ocupado por alienígenas “politicamente correctos”, um miúdo é apanhado na escola a ler o livro do Wells, “A Guerra dos Mundos”. Basicamente os professores, uma espécie de térmitas inteligentes e sensíveis, consideram o livro racista em relação aos marcianos, confiscam-lhe a obra e fazem-lhe uma pequena lavagem ao cérebro para que ele se esqueça de tudo. Tudo corre mal, claro. O processo de lavagem ao cérebro não resulta e ele vinga-se, ao longo de uma vida inteira, tornando algo que ele acabou de ler em qualquer coisa de muito real. Enfim, Herbert Goodfellow cria a verdadeira Guerra dos Mundos, constrói com as suas próprias mãos uma civilização marciana feita à base de polvos horríveis e imperialistas. Toda a história é uma metáfora, claro. Os vossos pais e educadores nunca vos proibiram de ler bds ou livros de FC? Ora, esta é a minha (nossa) vingança.
OA: Imagine que Julio Verne se tornou o primeiro presidente eleito da França, logo depois da queda de Napoleão III, trazendo para Paris todos os gênios científicos à sua disposição, incluindo um certo Prendick, herdeiro e implementador dos protocolos Moreau de modelagem da carne. Junte isso à ganância de outras potências européias, um imperador brasileiro vagando por terras francas, um cartunista italiano desolado pela morte da mulher e o desaparecimento do filho recém nascido, alguns homens e mulheres de índoles diversas e um assassino monstruoso com uma agenda própria e o futuro do mundo estará, irremediavelmente, comprometido.
DB: A antologia Global Dispatches* pediu a 20 autores de ficção-científica para escrever histórias durante a invasão marciana apresentada em “A Guerra dos Mundos”, de H. G. Wells. Cada um de nós escolheu um famoso escritor dos anos 1880 para contar uma história sobre confrontos com os invasores. Gregory Benford e eu escolhemos Júlio Verne para contar o que aconteceu quando os Marcianos chegaram em Paris. Nós procuramos manter o estilo e otimismo sem limites de Verne.
Qual a importância de Júlio Verne para a sua história?
JB: As relações entre Jules Verne e Wells sempre foram frias. Embora nunca se tivessem encontrado no universo real, nenhum dos dois gostava dos trabalhos do outro. Wells achava aborrecidas as obras de Verne. Verne dizia que Wells inventava demasiado. E contudo foram eles que iniciaram as duas rotas paralelas daquilo que viria a ser chamada a ficção científica. Wells criou o “scientific romance”, Verne as “viagens extraordinárias”. Tinham os dois visões do mundo diametralmente opostas. Wells simpatizava com o socialismo enquanto Verne era profundamente conservador. Um escrevia para adultos, o outro tinha em mente a educação dos jovens. À data de 1900, um ainda era jovem, o outro viria a morrer cinco anos mais tarde. Um receava o futuro, o outro ansiava por ele. Por isso, nada mais interessante do que juntar os dois, como jornalistas, numa expedição punitiva a Marte que, neste universo, Wells imaginou mas nunca chegou a escrever.
OA: Sem Júlio Verne e seu espírito empreendedor não haveria meu romance (o segundo** de uma série). Mesmo quando não está presente, ele assombra as paginas. É seu caráter e sua fé no lado bom da ciência e seus artefatos que permeia todo o livro, mesmo quando parece não haver nenhum motivo para esperança ou bons pensamentos.
DB: Verne não é somente a inspiração para a história, mas um narrador e personagem atuante. Ele vem com uma ideia com a qual os cidadãos de Paris defendem sua cidade.
Quando você, como leitor, descobriu Júlio Verne e o que ele significa para você?
JB: Descobri-o na biblioteca do meu avô aí pelos meus oito anos de idade, naquela época em que eu devorava tudo o que me era posto entre as mãos. Não havia muitos livros do Verne, aí uns cinco ou seis, mas entre eles estava a “Viagem ao Centro da Terra” e o “Da Terra à Lua”. Gostei da “Viagem”, mas achei o “Da Terra à Lua” uma chatice do caraças, onde os infodumps sufocavam toda a narrativa. No meio de toda aquela confusão referencial, havia também as obras do Edgar Rice Burroughs, principalmente do Tarzan. Esses li-os todos. Tenho de confessar que adorei juntar o Burroughs, o Verne e o Wells numa só narrativa, juntamente com alguns dos personagens que eles criaram.
Hoje em dia consegui juntar na minha biblioteca toda a obra de FC do Wells, assim como praticamente todos os livros do Verne (64)… ufa… e, para meu terror, no acto da releitura, é o Burroughs quem eu tenho mais dificuldade em assimilar. Wells lê-se para sempre e mais um dia. Quanto ao monsieur Jules Verne… bom, é um marco, mesmo quando dá o seu nome a obras que nunca escreveu.
OA: Meu encontro com Verne aconteceu cedo, creio que antes dos dez anos, quando descobri a série animada “Viagem ao Centro da Terra”. Daí para os romances foi um pulo. Pouco mais tarde, vi uma reprise de “Vinte Mil Léguas Submarinas” no cinema, e aí foi impossível não sonhar com as formas retrô do Nautilus e as aventuras submarinas do Capitão Nemo. Para mim, Verne, que leio até hoje com certa regularidade, era a encarnação do espírito desbravador da humanidade, aquilo que um dia ainda vai nos salvar de nós mesmos. Gosto de acreditar que ele foi canonizado por minha igreja particular. São Júlio Verne vela por nós, mesmo em tempos de obscurantismo e ignorância galopante.
DB: Tanto os livros como os filmes foram importantes para mim, quando criança.
* Editada por Kevin J. Anderson e publicada em 1996 pela Bantam Spectra. Sem tradução em português.
** O primeiro sendo “A Mão Que Cria”, publicado pela Editora Mecuryo em 2006. Ambos os livros podem ser lidos de forma independente. “A Mão Que Pune – 1890” ganhou o Prêmio Argos 2019 como Melhor Romance de Literatura Fantástica em língua portuguesa.
A coluna agradece aos entrevistados.
Luiz Felipe Vasques
25/02/2019