A Lua e o Ramadã
No próximo dia 2 de abril, para a maioria dos países muçulmanos, terá início o mês do Ramadã. Durante todo o mês, o fiel deve observar o jejum durante a parte clara do dia, e aprofundar sua vida espiritual por meio da oração, louvor e reflexão. Além de momento para lembrar daqueles que passam fome, o Ramadã é também ocasião para reunião familiar e congraçamento nas mesquitas. É também uma boa ocasião para conhecermos um pouco melhor o calendário adotado no mundo islâmico e o fundamento astronômico envolvido.
O calendário islâmico, que é estritamente lunar, tem 12 meses perfazendo 354 ou 355 dias. Cada mês começa no início de um novo ciclo lunar, e tem 29 ou 30 dias de duração de maneira intercalada. O calendário lunar é o oficialmente adotado em alguns países muçulmanos, como a Arábia Saudita, enquanto em outros se usa o gregoriano para finalidades civis e o islâmico para as datas religiosas.
A previsão da primeira visibilidade do crescente lunar logo após a Lua Nova é um problema astronômico complexo, que tem desafiado a astronomia por vários séculos. Em 500 a.C., na Babilônia, os astrônomos já tinham desenvolvido métodos numéricos sofisticados para prever o movimento da Lua, os instantes das fases e da ocorrência da primeira visibilidade do crescente lunar logo após o pôr do sol. Com o passar do tempo, procedimentos mais precisos foram desenvolvidos pelos astrônomos hindus, muçulmanos e judeus, e o refinamento do processo continua até hoje.

Como percebemos, o uso da Lua para medir a passagem do tempo fazia parte da cultura dos povos do Oriente Médio. Com o surgimento do Islã, a prática de se usar a Lua ganhou status de obrigatoriedade a partir da seguinte passagem do Alcorão, o livro sagrado dos muçulmanos:
““Perguntar-te-ão sobre os novilúnios. Dize-lhes: servem para auxiliar o homem no cômputo do tempo e no conhecimento da época da peregrinação…”(2:189)
No começo era comum cada localidade designar um grupo de pessoas treinadas para observar o crescente lunar e determinar a duração de cada mês no calendário islâmico. Essa necessidade de se registrar visualmente o crescente, gerava dificuldades na previsão da duração do mês, pois fatores como a presença de nuvens, condições atmosféricas, baixa altura da Lua em relação ao horizonte e o seu afastamento do Sol, podem inviabilizar a observação do tênue fino crescente. Caso a Lua não fosse observada na data esperada, o mês ganhava um dia adicional. Em 2019 obtive uma fotografia da Lua no ano novo islâmico, alguns minutos após o pôr do sol (abaixo). Repare como ela estava muito próxima do horizonte, como sempre acontece no início de cada mês muçulmano.

A necessidade de se elaborar um calendário lunar rigoroso estimulou o desenvolvimento da Astronomia no mundo islâmico a partir do século 8, gerando uma grande quantidade de tratados sobre a Lua e seus movimentos, culminando com modelos matemáticos extremamente complexos, que viriam a influenciar Nicolau Copérnico no século 16, em plena Europa Renascentista.


141,3. Egyptian National Library
É fácil entender o motivo dos meses do calendário muçulmano terem alternadamente, 29 e 30 dias. Para isso temos que lembrar a origem das fases da Lua. Uma vez que nosso satélite natural não possui luz própria e orbita a Terra, observamos a sua parte iluminada em diferentes ângulos, fazendo com que a aparência lunar se modifique (imagem abaixo).

O intervalo de tempo para a ocorrência de duas fases idênticas é chamado Período sinódico e tem o valor médio de 29d 12h 44min 3s = 29,53059 dias. Ora, o calendário lunar se baseia justamente nesse ciclo. Naturalmente, não é nada prático criar um calendário onde cada mês tenha a duração de 29 dias e “meio”. Assim, foi criando um calendário com 12 meses lunares com durações alternadas de 29 e 30 dias, o que na prática, a longo prazo, dá um mês com duração média de 29,5 dias. Genial não é? Quase! Perceba que ainda assim, 29,5 é diferente de 29,53059 (a duração real do mês sinódico) e, por isso, de tempos em tempos, se faz a inserção de um dia no último mês do ano. Essa é a razão do ano lunar muçulmano ter 354 ou 355 dias.
Países diferentes podem celebrar o Ramadã e outras datas religiosas em dias diferentes. O motivo é simples: o início de cada mês depende da visibilidade do crescente lunar, enquanto que a hora que a Lua se põe num lugar particular, depende da longitude. Assim não se espante se ao fazer pesquisa no Google sobre a data do Ramadã, vier a encontrar datas diferentes.
Atualmente várias comunidades se utilizam do calendário lunar estabelecido por critérios astronômicos bem definidos, e não mais dependentes da visibilidade do crescente lunar. No entanto, para muitos muçulmanos, a primeira visibilidade do crescente lunar no começo de cada mês é ainda uma questão sensível. Particularmente no início e fim do Ramadã e do Hajj (mês da peregrinação à cidade sagrada de Meca), ocasiões em que o crescente lunar é ansiosamente aguardado por muçulmanos em toda parte do mundo.
Acompanhar o ciclo das fases da Lua era uma tarefa necessária para os povos nômades do deserto bem antes do advento do Islã. A importância da Lua nas sociedades muçulmanas pode ser percebida nas suas bandeiras, arte em geral e na rica arquitetura das mesquitas.


Quem quiser poderá acompanhar nos próximos dias a contínua e bela mudança da aparência da Lua. No dia 2 de abril, às 17h40min, a Lua estará bem fininha e próxima de onde o Sol se pôs. No início das noites seguintes, será fácil perceber a mudança da sua aparência em direção ao Quarto Crescente. Aliás, essa é a melhor fase da Lua para se observar ao telescópio. Fica aqui o convite para vir até o Planetário na próxima quarta-feira, dia 6 de abril. A distribuição de senhas para a observação do céu tem início às 18h30min.
Feliz Ramadã!