Nossos Astros na Ficção Científica: A Terra
Na série dos nossos astros na FC, hoje falaremos da Terra.
Eu hesitei em falar do nosso planeta para essa série. Essencialmente, porque é o berço de todas as narrativas já pensadas. Mesmo as que se passam em outros mundos, em que a Terra nem é vislumbrada – como no universo ficcional de Star Wars –, ainda assim sempre temos ecos do primeiro mundo que conhecemos. Talvez nos seja quase impossível pensar a condição humana sem a Terra envolvida. É, afinal, o meio-ambiente no qual evoluímos, vivemos, triunfamos e contabilizamos perdas. Falamos em terraformar mundos, não somente na Ficção Científica, mas como hipótese futura em projetos de colonização espacial. Sendo assim, talvez mais de 90% de toda a FC escrita se passe na Terra: aqui no blog, nesta série dos Nossos Astros na FC, normalmente tanto já fica de fora…
Antes de haver a consciência que habitamos um planeta – o que só foi possível com o Heliocentrismo de Copérnico e a comprovação por Galileu –, o céu acima, a paisagem ao redor e o solo abaixo de nós eram a medida do mundo que podíamos perceber e, assim, especular. Acreditamos que podia ser plano, que podia estar sobre as costas de animais divinos, que podia ser finito ou infinito, onde o que importava era a vizinhança da nossa tribo ou nação, que podia ser algo inteligente, ou a carcaça do que havia sido um ser inteligente, que era o degrau intermediário entre o que era mais sublime e literalmente acima de nós e o mais terreno, bem abaixo de nós – acreditamos em todo tipo de coisa, e contamos, desenhamos, esculpimos e escrevemos sobre elas.
As primeiras narrativas fantásticas, ao longo da Era Cristã, que nos levam céu afora – ou mesmo solo adentro – sempre acabam funcionando como uma metáfora sobre a sociedade onde seus autores viviam, gerando sátiras e críticas e outras reflexões de suas épocas: Kircher, Swedenborg, Swift, Alligheri, Voltaire, todos eles. Estávamos ainda projetando, de alguma forma, o que vivíamos, os nossos contextos. Talvez nunca deixemos de fazê-lo completamente.
O planeta Terra se revela na FC de várias formas. Vamos pensar algumas delas, como exemplos:
A Metrópole: mantendo a analogia com o período das Grandes Navegações e reinos e países em expansão; um bom número de obras fala de uma Terra, com a Humanidade sob uma só bandeira explorando espaço afora e estendendo sua unidade política – seja um império, uma república, uma federação – por outros planetas e sistemas solares, às vezes de forma benévola, às vezes de forma opressora, fundando colônias ou conquistando mundos habitados. A série alemã “Perry Rhodan” e o universo de “Star Trek” são bons exemplos de governos interestelares democráticos. Na série de games “StarCraft”, o Diretório Unido da Terra é um governo fascista de ambições imperialistas.
A Terra Decadente: Quando a Terra passou a tocha, por assim dizer. Pode ser uma variação da Metrópole, com obras sobre um mundo natal da Humanidade sem importância e posto de lado na vida, quando não na memória, dos cidadãos da galáxia. Obras como os livros de “Duna” (1965, Frank Herbert) contam da “Velha Terra” que se devastou em guerras nucleares deixado a sós para que seu ecossistema se recupere; nem tão diferente da Terra-Que-Foi da telessérie “Firefly”, onde seres Humanos prosseguiram para as estrelas após o colapso ambiental e fim dos recursos globais. No universo de “Fundação” (1951, Isaac Asimov), a Terra é tida como uma província atrasada e cheia de problemas causados pela superpopulação. O que nos acaba levando até…
A Terra Esquecida: obras como os ciclos de “Darkover” (1958, Marion Zimmer Bradley) e “Dragonriders of Pern” (1961, Anne McCaffrey) contam de colônias humanas, no que hoje em dia se convém por exoplanetas, que perderam sua tecnologia e acabaram se esquecendo de sua origem, regredindo a níveis similares ao da Idade Média.
Terra, a Colônia Esquecida: em vez de ser o início da jornada da Humanidade pelas estrelas, somos o ponto de chegada de alguém, apenas esquecemos isso; ideia inspirada em enigmáticas e grandiosas construções antigas em nosso planeta, assim como no vai e vem das civilizações e povos da própria Terra: a feitura das pirâmides egípcias já era desconhecida, pela altura da dinastia ptolomaica, por exemplo. O autor russo Sergey Lukianenko em sua duologia “The Stars Are Cold Toys”/”Star Shadow” (1997) fala da descoberta da Humanidade, após dominar tecnologia de voo mais veloz que a luz, descobrir alienígenas e com uma espécie, inteiramente similar à nossa, descobrir que fomos colonizados em um passado distante. No universo “Known Space”, de Larry Niven, há um grau de interferência na Terra por uma raça alienígena que depois se desinteressou. E – novamente – “Perry Rhodan” brinca com isso em relação a Atlântida como sendo uma antiga colônia dos Arcônidas (mas não para somente aí…). O universo “Star Trek” fala de uma raça humanóide ‘semeadora’ anterior a todas conhecidas, justificando o fato de existir tantas raças humanóides semelhantes na vizinhança estelar – uma saída interessante para explicar o “alienígena cenográfico”. Não podemos deixar de fora o refúgio mítico na série “Galáctica” (tanto a original de 1979 quanto na versão de 2003), sendo nosso planeta a perdida Décima Terceira Colônia da Humanidade, para onde todos fogem do extermínio trazido por uma raça hostil e mais poderosa.
Sagas onde a Terra não é nada além de uma distante memória…
A Terra Devastada: esse é o cenário comum de se ver na vertente “Pós-Apocalipse” da FC. Os filmes “Mad Max” são os mais famosos exemplos: colapso ambiental seguindo-se de colapso da civilização, com sobreviventes escavando os restos das sociedades atrás de víveres e armas, organizando-se em novas tribos e identidades para proteção e ataque. Em geral essas histórias têm uma pegada ambiental: o filme “Waterworld” (1995) é em um mundo após o derretimento total do gelo dos polos, e a telessérie “Ark II” (1976) conta as histórias de um grupo de cientistas tripulando um veículo futurista perambulando por um EUA devastado pela poluição e guerra, tentando resolver e melhorar a vida de quem encontravam pela frente, em uma jornada de esperança. Similar, “Um Cântico para Leibowitz” (1959, de Walter M. Miller Jr) se passa após uma guerra nuclear que acabou com a civilização; uma ordem monástica católica procura preservar, à maneira dos monges copistas de outrora, cada página de informação adquirida sempre que possível: seja livro de filosofia, bula de remédio ou manual de instruções, a maioria já enigmática para os monges. Na animação, “Patrulha Estelar”, na primeira de suas séries (1974), conta a história da busca de uma tecnologia altamente avançada para salvar a Terra, que teve a superfície destruída por ataque dos cruéis Gamilons, cuja letalidade ainda exterminará toda a possibilidade de vida em um ano. “Patrulha Estelar” é um bom exemplo de como os temas podem se assomar, no caso entre a Terra Devastada e…
A Terra Invadida: essa noção provavelmente é devida a H. G. Wells e seu “A Guerra dos Mundos” (1898), quando uma forma de vida extra-terrestre pela primeira vez na FC invade o planeta Terra. Por seu potencial dramático, esse subgênero parece fazer mais sucesso em telas e monitores do que na literatura. Desde então, tivemos de invasões mão-pesada até as mais insidiosas, como as do período da histeria macarthista nos anos 1950, que se destaque o clássico do cinema “Invasores de Corpos” (1956, diversas filmagens. A de 1978 considerada sendo a melhor. Já a história original foi publicada como romance em 1955, por Jack Finney), com um tipo de invasão silenciosa onde pessoas normais eram substituídas pela força invasora, aparentando normalidade apenas no exterior, sendo mais uma infiltração. O cult de John Carpenter “Eles Vivem” (1988) aborda com paranoia, eficiência e uma dose de humor negro o tema da infiltração na sociedade. Em “V – A Batalha Final” (original de 1984 e a versão de 2009), os Visitantes surgem como sendo boa-praça apenas para ocultar motivos malignos a serem revelados na trama. Intenções escusas também fazem parte da agenda dos Taelons em “Terra: Conflito Final” (1997), enquanto que uma invasão na base da força bruta pode ser apreciada nos dois filmes da franquia “Independence Day” (1996 e 2016).
Em videogames, desde os tempos de “Missile Command” (1980, adaptado para o sistema Atari em 1981) e, é claro, “Space Invaders” (1978, 1980 para o Atari), a Terra sofre com invasões alienígenas. Mas de lá pra cá os gráficos se sofisticaram e a história também. A galáxia é invadida por uma força exterminadora de formas de vida orgânicas inteligentes na série de games “Mass Effect”, com o auge sendo a Batalha da Terra, no terceiro jogo. Na série X-COM, invasão alienígena e resistência operam sob uma lógica de ‘black ops’, em vez de uma invasão aberta.
Invasões podem se revelar com um caráter benéfico, a princípio não compreendido pelos humanos, como em “O Dia Em Que a Terra Parou” (1951) ou “O Fim da Infância” (1953, Arthur C. Clarke).
A Terra Distópica: similar à Terra Devastada, não excludente nem exclusiva, focalizando um governo totalitário – global ou quase, como em geral na Terra Utópica – que trata a população de maneira opressora e manipulando fatos e História. O exemplo premier é “1984” de George Orwell (1948), em que o mundo se divide em 3 grandes nações sempre guerreando umas com as outras, e em uma delas – a Oceania, onde a história se passa – há a obediência cega ao Partido, que após a revolução edita a História a ponto de fazer parecer que foi a genialidade de seus integrantes que sempre trouxe as modernas invenções, e tudo que vinha por ele devia ser aceito inquestionavelmente – e ainda, o Partido era para o povo seu Grande Irmão, que dele assim cuidava através de onipresente sistema de vigilância (sim, o conceito e termo “Big Brother” se originam aqui) atrás de dissidentes. “Nós” (1924), de Ievguêni Zamiátin, é uma sátira política que fala de um governo planetário ainda mais opressor, onde o Estado Único ditava até os horários de lazer, refeição e sexo em uma sociedade onde pessoas recebiam números, em vez de nomes. “Nós” é considerada influência de obras distópicas posteriores, como “1984”, “Laranja Mecânica”, “Fahrenheit 451”, e as séries “Divergente” e “Jogos Vorazes”. Já “Admirável Mundo Novo” (1932), de Aldous Huxley, aposta no controle da sociedade pelo excesso da sensação de bem-estar, por drogas inclusive, como método de incutir a alienação das massas.
A Terra Utópica: o termo “utopia” foi cunhado em 1516 por Thomas More, em um livro com esse nome, descrevendo uma ilha imaginária onde a sociedade é justa e igualitária. O termo pegou desde então, para designar escritos onde o futuro é brilhante, os tempos são mais justos, esclarecidos e prósperos para todos, envolvendo qualquer lado do espectro político ou econômico. Na FC, adicione aí uma sociedade além das amarras de fronteiras imaginárias das linhas em um papel, do preconceito ou da ganância. A Humanidade, unida, caminha para um futuro brilhante, ainda que não sem percalços. Esta aposta no futuro às vezes se dá após um período de tribulações: um exemplo popular é “Star Trek”, que, após as Guerras Eugênicas e a III Guerra Mundial, a Humanidade unificada entrou em um período de união e harmonia entre os povos. Já na telessérie dos anos 80 “Buck Rogers no Século XXV”, algumas cidades isoladas em meio à devastação nuclear conseguiram manter e estimular a civilização, mesmo uma de alcance interestelar. A Terra Utópica é, no fim das contas, uma crença no final feliz para a espécie Humana.
Por falar em finais felizes, talvez esse escrito devesse mesmo falar sobre planeta: conforme descobri depois que comecei, no momento que inicio este artigo é dia 22 de Abril – Descobrimento do Brasil, decerto, mas também Dia da da Terra. De alguma forma, apropriado.
Luiz Felipe Vasques
23/04/2019
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