Conan Doyle, autor de Ficção Científica
O colunista convidado de hoje é o jornalista e escritor de ficção científica Carlos Orsi. Orsi trabalha com divulgação científica, sendo o editor da revista online Questão de Ciência. Ele nos escreve a respeito de Arthur Conan Doyle, que dia 25 de maio último teria feito 160 anos de idade. O criador do célebre personagem Sherlock Holmes também escreveu o que seria classificável como ficção científica, e é sobre isso que Martinho discorre. Pessoalmente, eu acho que a ideia da elaboração de um método científico na investigação de cena de crime, proposta nos escritos de Sherlock Holmes e que mudaram a investigação na vida real, já qualificaria uma espécie de “lugar de honra” das histórias do Detetive dentro do gênero.
Semana que vem, voltamos com o tema de Nossos Astros na Ficção Científica.
Conan Doyle, autor de Ficção Científica
O escritor britânico Sir Arthur Conan Doyle (1859-1930) é mais lembrado hoje pela criação do mais famoso detetive da ficção, Sherlock Holmes, cujas aventuras escreveu e publicou ao longo de um período de 40 anos, de 1887 (o romance “Um Estudo em Vermelho”) a 1927 (o conto “O Velho Solar de Shoscombe”). Nesse mesmo período, no entanto, ele também se dedicou a diversos outros gêneros literários – aventura histórica, terror e, assim como seu contemporâneo nas letras inglesas HG Wells, ficção científica.
Do mesmo que Wells e diferentemente de outro pioneiro do gênero no século 19, o francês Jules Verne, em Conan Doyle a ciência, enquanto alimento para ficção, tinha muito mais a obrigação de impulsionar a aventura e de, eventualmente, estimular a reflexão social e existencial do que de estar correta ou servir a algum fim didático.
Sua obra mais conhecida no gênero, o romance “O Mundo Perdido”, sobre a descoberta de dinossauros vivos na Amazônia brasileira, funciona muito mais como aventura e comédia de costumes (fora a deliciosa caricatura dos “sábios cientistas” da época, presente nas figuras do Professor Challenger e sua nêmese, Professor Sumerlee, o jovem narrador, o Mallone, embarca na aventura para provar à noiva que é um pretendente digno, mas as coisas não saem exatamente como ele esperava) do que como aula de paleontologia, ainda que paleontologia vitoriana. O contraste com as longas digressões sobre a classificação científica da vida marinha, em “Vinte Mil Léguas Submarinas”, de Verne, é gritante.
Em sua introdução a “The Best Science Fiction of Arthur Conan Doyle”, o crítico George Slusser aponta que, em Conan Doyle, a ciência tende sempre a abrir portas para a selvageria ou o passado. Isso é verdade em “O Mundo Perdido” e também na única aventura de Sherlock Holmes que pode ser classificada, de modo inequívoco, como ficção científica.
Embora, às vezes, “A Aventura do Pé do Diabo” seja incluída no gênero, sua única inovação científica – um veneno inexistente no mundo real – me parece um argumento fraco demais. Se o apelo a seres naturais inexistentes bastasse, “A Aventura da Faixa Malhada”, como sua “áspide dos pântanos” (uma serpente que bebe leite!) também deveria entrar na lista.
Em contraste, “A Aventura do Homem que Andava de Rastros” tem todas as marcas da ficção científica: neste conto, um cientista idoso recorre a uma espécie de Viagra avant-la-letre para não desapontar a noiva muito mais nova. Infelizmente, a droga, feita à base de hormônios de macacos, tem efeitos colaterais trágicos. O conto termina com Holmes enunciando uma pequena lição de moral: o ser humano, ao usar a ciência para se erguer acima da natureza, corre o risco e cair abaixo dela.
Essa ideia da ciência como algo que liberta atavismos insuspeitos e constrói pontes não para o futuro, mas para um passado que seria melhor deixar quieto, faz de Conan Doyle uma espécie de precursor de H.P. Lovecraft, com seus horrores cósmicos e ancestralidades insuspeitas. Isso fica bem evidente no conto “O Horror das Alturas”, publicado em 1913, em que o esforço dos aviadores em ascender a camadas cada vez mais elevadas da atmosfera revela a existência de uma ecologia hostil acima das nuvens.
“O Mundo Perdido” não é a única aventura do Professor Challenger, que aparece ainda em dois contos e mais dois romances. Os contos são interessantes: um deles, “Quando o Mundo Gritou”, explora a ideia de que o planeta é um enorme organismo – e que a tecnologia humana finalmente tornou-se potente o bastante para infligir dor à própria Terra. Já os romances envelheceram mal.
Um deles, “O Veneno Cósmico”, já era anacrônico para a época em que foi escrito: publicado em 1913, trata da passagem da Terra por uma zona de “éter venenoso”. A existência do éter, uma substância misteriosa que preencheria o espaço normalmente tido como vazio, havia sido descartada pela comunidade científica após a publicação da primeira versão da Teoria da Relatividade por Albert Einstein, em 1905. O outro, “A Terra da Bruma”, é uma peça de propaganda do espiritismo, religião a que Conan Doyle se converteu após a Primeira Guerra Mundial.
Essa virada rumo ao espiritual fica ainda mais clara no romance “A Cidade Submarina”, de 1929, em que a descoberta de uma Atlântida submersa, mas ainda habitada, abre caminho para uma aventura que culmina em manifestações heroicas de mediunidade e o embate de espíritos ancestrais.
Doutor Maracot, o cientista que lidera a expedição responsável por descobrir os atlantes, torna-se o médium que permite que o espírito do herói Warda volte a se manifestar no mundo dos vivos. Ao final do romance, o homem de ciência exclama: “Que isso tenha acontecido comigo! Um materialista, um homem tão imerso na matéria que o invisível não existia na minha filosofia. As teorias de uma vida inteira desabaram ao meu redor”.
Isto é, claro, exatamente o que Conan Doyle ansiava ouvir dos cientistas que punham em descrédito as “provas” de vida após a morte oferecidas pelo espiritualismo da época. Curiosamente, Sherlock Holmes jamais passou por tal conversão: nas quatro décadas em que criou aventuras para o Grande Detetive, Conan Doyle jamais produziu uma em que fenômenos sobrenaturais ou paranormais fossem validados. Mas se seu detetive se manteve cético até o fim, seus cientistas abraçaram a credulidade.
Carlos Orsi
(recebido em) 01/06/2019
Carlos Orsi é escritor e jornalista, com vários livros de ficção científica e contos de mistério publicados. Foi o primeiro brasileiro a ter um artigo aceito pelo Baker Street Journal, a principal publicação de estudos sobre Sherlock Holmes. Atualmente edita a revista online Questão de Ciência: http://www.revistaquestaodeciencia.com.br